terça-feira, 18 de setembro de 2007

OLHO CUBANO

Gerónimo não era o que se podia considerar um hóspede regular. Às vezes vinha, outras não vinha e, quando estava disposto a vir, telefonava um dia antes a dizer que, afinal, já não podia. Por acaso desta vez veio e, como era hábito seu, pedia sempre para ser alojado no quarto 23 só que, depois de lhe ser entregue a chave e de subir até a terceiro andar, regressava sempre à recepção a dizer que a chave não entrava na porta. Esquecia-se, porém, que o quarto que tentava abrir era o 32 e não aquele que realmente pretendia ocupar.
Todos, na pensão, já o conheciam e, por saberem que sofria de astigmatismo, não estranhavam as suas confusões, tanto com os números, como com a marca das cervejas ou até mesmo com o dinheiro. De cada vez que pretendia pagar alguma coisa, ficava sempre à espera de troco, mesmo quando o dinheiro que entregava não era suficiente para pagar aquilo que pedira. Lá ficava ele encostado ao balcão, ou à mesa que fosse, com aqueles óculos de fundo de garrafa, sem que alguém percebesse muito bem o que ele queria.
Mas isso não nos causava qualquer tipo de incómodo pois nem o Gerónimo era um hóspede muito frequente, nem levava a sua distracção muito a peito, tendo alturas até que se ria da sua limitação. Dizia que estava à espera de ser operado já fazia dois anos, sem que ainda o tivessem chamado.
A Luísa, pessoa habitualmente distante destes problemas terrenos, mais preocupada com o amor da sua vida e em decorar as suas cantigas pimba, comentou com o Sr. Gerónimo que, em Vila Real de Santo António, 14 pessoas iam ser operadas em Cuba, no âmbito de um protocolo que aquela autarquia celebrou com uma cidade sua geminada daquele país.
- Ai sim!!!! - respondeu o Sr. Gerónimo muito admirado.
- É verdade - disse a Luísa - e a lista de inscritos já vai em 150.
- E quando é a partida menina Luísa? - perguntou o Sr. Gerónimo.
- A partida não sei, mas garanto-lhe que é para breve. - respondeu a Luísa.
Eu, como tinha lido qualquer coisa acerca do assunto, disse-lhe que a partida estava marcada para sábado e, ao fim de 15 dias, os pacientes já estavam de novo em casa e a ver muito melhor.
- Espantoso. - disse com alegria o Sr. Gerónimo - Se me apressar ainda posso tentar ficar com a vaga de algum desistente. Só é pena não estar completamente curado para ver o Benfica a jogar contra o Milão.
- Talvez tivesse mais sorte se conseguisse ver o F. C. do Porto contra o Liverpool. - disse eu.
- Essa teve piada. - disse o João, sabendo que sou simpatizante do clube azul e branco.
A conversa ficou por aqui e o Sr. Gerónimo não teve outro remédio senão continuar à espera de ser chamado para ser operado, pois não pretendia tornar-se cidadão Vilarealense nem viajar até aquele país. Mas, cá para os meus botões, continuei a pensar no ridículo da situação.
Como governante sentir-me-ia muito incomodado se cidadãos do meu país tivessem que ir a outro realizar uma operação que aqui não conseguiam e ainda por cima, num país por (quase) todos considerado pária. É certo que cada um tem que procurar o sítio onde seja melhor tratado mas, haja paciência, o problema é puramente estrutural, diria mesmo cultural porque, no nosso país, a classe médica está acima do comum dos mortais, bastando para isso, ver a média de entrada nos cursos de medicina e a necessidade de, cada vez mais, existirem médicos para combater as sempre crónicas listas de espera, a ponto de ser necessário equacionar a contratação daqueles profissionais noutros países.
Será que os nossos médicos são melhores que, por exemplo, os médicos espanhóis, ou será que os "numerus clausus" só existem, para que seja possível ter um consultório privado e ir fazendo umas horitas de serviço público?
É uma questão que nos afecta a todos, tanto mais que, muitos daqueles que nos observam, tratam e curam, frequentaram universidades espanholas, onde as médias de entrada são inferiores, e acabam por regressar com as mesmas habilitações que aqueles que não tiveram necessidade de se ausentar têm. É pura demagogia, ironia e até uma provocação. Um faz-de-conta, que nos ilude cada vez que necessitamos de ir a um centro de saúde ou a um hospital e ouvimos uma voz simpática dizer em castelhano.
- Buenas noches, Señor! Qué pasa?.

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