quinta-feira, 18 de outubro de 2007

PARADOXILIDADES AMORAIS

O João, o nosso hóspede mais jovem, mostrava à Susana e à Cristina, o que tinha aprendido hoje na escola de hotelaria da nossa terra. Claro que, para elas, o que ele lhes estava a mostrar não era novidade mas, como boas profissionais que são, ouviram atentamente o que João lhes dizia, ajudando-o quando ele não percebia algum pormenor e ensinando-lhe novas técnicas que ele podia utilizar para obter os mesmos resultados. A D. Rosalinda também observava aquilo que os três estavam a fazer e, como reparou que o rapaz tinha jeito para a culinária, prometeu que iria pensar na hipótese de propor ao João um estágio na pensão. Ao encarar como possível essa realidade, quase que deixou cair os ovos que estava a tentar partir para dentro da tijela que iria servir para fazer os crespes de chocolate.
Comigo, no bar da pensão, estava o Paulo. Tínhamos acabado de jantar e preparávamo-nos para tomar um café, quem sabe acompanhado de um digestivo, talvez uma aguardente velha, em balão aquecido.
Na televisão, além da cimeira europeia que está a decorrer em Lisboa, mostravam um pai comovido que, em desespero, apelava à justiça italiana que autorizasse o fim do coma irreversível em que a sua filha se encontrava há já quinze anos. Chocou-nos aos dois esta indecisão por parte da justiça em fazer....justiça.
- Para aquele pai a filha já morreu há bastante tempo. - disse o Paulo
- Desde que entrou em coma. - disse eu
- Eu também não sei como reagiria se tivesse que passar por um situação daquelas - disse eu -, porque, apesar de ser defensor da vida humana, após a dez semanas claro, não consigo aceitar muito bem o facto de, perante a impossibilidade da medicina em proporcionar uma vida digna àquela pessoa, não se optar pela morte clinicamente assistida.
- Eu também sou da tua opinião - disse o Paulo -, mas existem casos em que as pessoas saíram do coma passados 15 ou mais anos.
- Sim claro, mas no caso da moça italiana, as perspectivas de recuperação são praticamente nulas, encontrando-se a senhora em estado vegetativo - disse eu.
- Não é preciso ir mais longe - disse o Paulo -, aqui bem perto de nós, temos um caso idêntico. Uma rapariga bastante jovem, mãe de uma filha com 4 anos de idade, sofreu um acidente há mais de um ano e agora está em casa, a ser limpa, alimentada e acompanhada pela mãe.
- Sim eu recordo-me dessa situação. - disse eu
- Dizem que aquela criatura vai estar assim até ao fim dos dias dela - continuou o Paulo -, vai ter necessidade de acompanhamento constante porque, além de não conseguir fazer rigorosamente nada pelos próprios meios, todos desconhecem se está ou não consciente. Valerá a pena mantê-la nessas condições, sendo certo que, nem ela própria, ao ter consciência da situação em que se encontra, gostaria de se manter assim.
- São tudo questões muito complicadas - disse eu -, para uma mãe ou um pai que todos os dias vêm uma filha naquela situação, sabendo que assim se vai manter por tempo indeterminado, só por muito amor é que aguentam tratar dela, na esperança claro, de algum dia ela reagir.
- Depois, também existe a questão do Vaticano (mais uma vez a religião) que contesta veemente a opção pela eutanásia, por segundo eles, ser "inaceitável o relativismo dos valores, sobretudo quando estes se referem à conservação da vida". - disse eu.
- Sim - disse o Paulo -, também temos que contar com a questão dos valores que "assaltam" os mais devotos fiéis da igreja católica, a mesma que escondeu durante anos os escândalos sexuais dos seu padres e das suas freiras.
- Pois é - disse eu -, a questão da eutanásia que, a meu ver, merece ser analisada e discutida, é mais uma barreira psicológica e moral que a nossa sociedade tem que ultrapassar, contudo, não sou da opinião que, artificialmente, se tente manter a dignidade de um ser humano quando a sua dignidade depende, entre outras, da capacidade que tem para decidir naturalmente e em consciência.
- Tens razão Mário - disse o Paulo - , mas o mais caricato de tudo isto é que, por um lado, o Vaticano defende a utilização de uma máquina, criada pela ciência, para manter, artificialmente, uma vida sem futuro e, por outro, condena o recurso a métodos científicos para impedir o nascimento de outros e, mais grave ainda, para impedir a propagação de doenças que matam milhões de pessoas que, curiosamente, vivem em países onde maioritariamente se professa a religião católica.

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